Liturgia no cruzamento?
O texto a seguir é de autoria do Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e
Disciplina dos Sacramentos e foi publicado no L’Osservatore
Romano, aos 12 de junho de 2015.
Resolvi
traduzi-lo, pois traz uma luz de esperança e claras pistas de intenção do
retorno para o espírito do Concílio Vaticano II. Resta torcer que não falte a
coragem, ao Cardeal, de enfrentar o espírito lúdico da Liturgia hodierna. Algumas
das questões abordadas pelo Cardeal podem ser consideradas secundárias ou
desnecessárias, o que não deixa de reconhecer a matéria como excelente
intervenção e contribuição na busca da verdadeira Liturgia, que realmente
realiza a comunhão do homem com Deus.
Nesta tradução foram feitas
algumas pequenas intervenções, para facilitar a leitura. Primeiramente, foram
introduzidos subtítulos. Os números em parênteses referem-se a Constituição
sobre a Liturgia do Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium. Em parênteses
“quadradas” foram feitas explicações úteis. Todos realces provém do tradutor
Enfim, sugiro uma
leitura atenta desta matéria e convido para questionar a maneira de celebrar a
Liturgia, aqui, nesta página e lá, na sua Paróquia. Deus te ilumine!
A ação silenciosa do coração.
Será que finalmente vamos conhecer a Constituição sobre a Sagrada Liturgia do
Concílio Vaticano II, após cinquenta anos da sua promulgação pelo Papa Paulo
VI?
A “Sacrosanctum Concilium” não é um simples catálogo de normas para
reforma litúrgica, mas uma verdadeira “Carta Magna” de toda a ação litúrgica.
Com ela, o Concílio Ecumênico nos dá uma lição magistral do método. Longe de
estar contente com uma abordagem multidisciplinar e exterior, o Concílio
quer fazer-nos contemplar sobre o que a Liturgia é em sua essência. A
prática da Igreja sempre vem haurindo de Quem Ela recebe e a Quem contempla
pela Revelação. O cuidado pastoral não pode ser desligado da doutrina. A Igreja,
“se empenha na ação e se entrega à contemplação” (cf. No 2).
Uma participação ativa
A Constituição do Concílio convida-nos a redescobrir a origem Trinitária
da ação litúrgica. Com efeito, o Concílio estabelece a continuidade entre a
missão do Cristo Redentor e a missão litúrgica da Igreja. “Por isso, assim como
Cristo foi enviado pelo Pai, também Ele enviou os Apóstolos... para que
realizassem a obra de salvação que anunciavam, mediante o Sacrifício e os
Sacramentos, em torno dos quais gravita toda a vida litúrgica” (No 6). A celebração da Liturgia é, portanto, nada mais
do que fazer presente a Obra de Cristo. A Liturgia em
sua essência é “actio Christi” [o agir de Cristo]: “a obra da redenção dos
homens e da glorificação perfeita de Deus” (No 5). É Ele quem é Sumo Sacerdote,
o verdadeiro Sujeito e verdadeiro Agente da Liturgia (No 7). Se este princípio
vital não for aceito, corre-se
o risco de transformar a Liturgia em uma auto-celebração da comunidade.
No entanto, a
correta ação da Igreja consiste em entrar na ação de Cristo, em inserir-se na
obra daquele que recebeu a missão do Pai. Por isso, recebemos “a
plenitude do culto divino”, pois “a sua humanidade foi, na unidade da Pessoa do
Verbo, o instrumento da nossa salvação” (No 5). A Igreja, portanto, Corpo de
Cristo, deve tornar-se um instrumento nas mãos do Verbo. Este é o sentido
último do conceito-chave da Constituição Conciliar: “participatio actuosa” [a
participação ativa]. Tal participação da Igreja significa tornar-se instrumento
de Cristo Sacerdote, com a finalidade de participar da Sua missão trinitária. A Igreja participa ativamente da
ação da Liturgia de Cristo, na medida em que ela se faz Seu instrumento. Neste sentido, a expressão
“comunidade celebrante” não é desprovido de ambiguidade e exige prudência (Cf.
Instrução “Redemptoris sacramentum”, No 42).
Portanto, a
“Participatio actuosa” não deve ser entendida como uma necessidade de
fazer qualquer coisa. O ensinamento do Concílio, sobre este ponto, tem sido frequentemente
deformado. Enquanto isso, trata-se de permitir que Cristo nos
aceite e nos una ao Seu Sacrifício. Por isso, a “participatio” litúrgica
deve ser entendida como graça de Cristo, que “associa sempre a si a Igreja” (No
7). E é Ele a quem pertence a iniciativa e a competência. A Igreja “invoca o
seu Senhor e por meio d´Ele rende culto ao Eterno Pai” (No 7).
O sacerdote, portanto, deve tornar-se, um instrumento que permite que
Cristo transpareça. Assim, como recentemente nos lembrou Papa Francisco, o celebrante não é
apresentador de um espetáculo; não deve visar a simpatia da
assembleia, colocando-se como seu principal interlocutor. Por sua vez, entrar
no espírito do Concílio significa, fazer-se desaparecer e desistir de ser o centro do palco.
Ao contrário do que às vezes se acentuava, está em conformidade com a
Constituição Conciliar, e até mesmo apropriado para que, durante o Ato
Penitencial, o Hino do Glória, orações presidenciais e Oração Eucarística,
todos – tanto o sacerdote, quanto os fiéis — voltem-se juntos ao Oriente,
para expressar o seu desejo de participar da obra de culto e da Redenção
realizada por Cristo. Tal modo de agir poderia ser duma maneira
conveniente introduzido nas catedrais, que devem ser exemplos da vida
litúrgica (Cf. No 41).
É claro que, há outras partes da Missa, onde o sacerdote, agindo “in
persona Christi Capitis” [na pessoa de Cristo Cabeça] entra em diálogo nupcial
com a assembleia. Este momento “cara-a-cara” tem como objetivo levar à relação
pessoal com Deus, que, através da graça do Espírito Santo, tornar-se-á relação
dos corações [‘coração-à-coração”]. Além disso, o Concílio propõe outros meios
que favorecem a participação: “as aclamações dos fiéis, as respostas, os salmos,
as antífonas, os cânticos, bem como as ações ou gestos e atitudes corporais”
(No 30).
Um espaço para Deus
Uma leitura excessivamente rápida e superficial [da Constituição] levou
a conclusão que é preciso agir de tal modo que os fiéis estejam
constantemente ocupados. A contemporânea mentalidade ocidental, moldada
pela tecnologia e fascinada pelos meios de comunicação de massa, desejou fazer
da Liturgia uma obra, eficaz e produtiva, de pedagogia. Neste intuito
tentava-se realizar celebrações de confraternização/convívio. As pessoas
engajadas ativamente na Liturgia, animadas por motivos pastorais, tentam, às
vezes, fazer dela um espaço didático, introduzindo na celebração elementos
profanos e espetaculosos. Não vemos, por acaso, como multiplicam-se os
testemunhos e aplausos? Acredita-se que isto favorece a participação
dos fiéis, na verdade, porém, a Liturgia está sendo reduzida a um encontro
humano.
“O silêncio não é uma virtude, nem o ruído um pecado, é verdade”, diz
Thomas Merton, “mas a agitação, confusão e barulho constantemente presentes na
sociedade moderna ou em certas liturgias eucarísticas africanas, são uma
expressão da atmosfera dos seus [da sociedade – int.trad.] pecados mais graves,
da sua impiedade e desespero. Um mundo de propaganda, de intermináveis
argumentações, de inventivas, críticas ou mera tagarelice, é um mundo em que
não vale a pena a si esforçar para devidamente vivenciar a vida. A Missa
torna-se uma confusão barulhenta e as orações um ruído exterior ou interior“
(Thomas Merton, “O sinal de Jonas” ed. Albin Michel, Paris, 1955, pg. 322).
Corre-se
um risco real de não deixar espaço para Deus em nossas celebrações. Caímos em tentação
dos Hebreus no deserto. Eles tentaram criar um culto de acordo com a sua
própria medida e grandeza. Não nos esqueçamos, porém, que acabaram se
prostrando diante do bezerro de ouro.
Há necessidade de silêncio
É a hora de ouvir atentamente o Concílio. A Liturgia é
“sobretudo o culto da Majestade Divina” (No 33). Ela possui um valor
pedagógico, na medida em que é totalmente orientada à glorificação de Deus e
prestar Lhe culto. A Liturgia nos coloca realmente na presença da
transcendência Divina. A verdadeira participação significa renovar em
nós mesmos aquela “admiração” que são João Paulo II tinha em grande
consideração (Ecclesia de Eucharistia, No 6). Esta santa admiração, este alegre temor, exigem o nosso
silêncio diante da Majestade Divina. Muitas vezes, se esquece que o
santo silêncio é um dos meios indicados pelo Concílio para favorecer melhor
participação da Liturgia.
Já que a Liturgia é obra de Cristo, se faz necessário que o celebrante
introduza seus próprios comentários? É preciso lembrar que, quando o
Missal permite uma intervenção, ela não deve se transformar num discurso
profano ou simplesmente humano, num comentário mais ou menos sutil, sobre
acontecimentos atuais ou numa saudação profana das pessoas presentes, mas ser uma exortação, muito breve, para
entrar no Mistério (Introdução Geral do Missal Romano, No 50). Com
relação à homilia, ela é um ato litúrgico, que possui as suas próprias regras.
A “Participatio actuosa” pressupõe que se deixe o mundo profano, para
entrar na “ação sagrada por excelência” (Sacrosanctum Concilium, No 7). Na
verdade, “nós tentamos, com uma certa dose de arrogância, permanecer no nível
humano, para entrar no nível divino” (Robert Sarah, “Deus ou nada”, pg.178).
Deste modo, é lamentável que o templo, em nossas igrejas, não é um lugar
estritamente reservado para o culto Divino, que se entre nelas de vestes
seculares e que o espaço sagrado não é claramente definido pela arquitetura. Já
que, como ensina o Concílio, Cristo está presente na sua Palavra, quando ela é
proclamada, é igualmente prejudicial que os leitores não usem roupas adequadas,
que acentuem que eles não estão pronunciando palavras humanas, mas a Palavra de
Deus.
O Mistério e a humildade
A Liturgia é uma realidade
fundamentalmente mística e contemplativa, e, consequentemente, ultrapassa a
nossa ação humana. Também a “participatio” é uma graça de Deus. Portanto, pressupõe a nossa abertura para
o mistério celebrado. Assim, a Constituição recomenda pleno
entendimento dos ritos (Cf. No 34) e, ao mesmo tempo, determina “que os fiéis possam rezar ou
cantar, mesmo em língua latina, as partes do Ordinário da Missa que lhes
competem” (No 54).
De fato, o entendimento dos ritos não é um ato da razão humana, deixada
à sua própria capacidade, e que deveria acolher tudo, compreender tudo, abraçar
tudo. O
entendimento dos ritos sagrados é um entendimento do “sensus fidei”, que
influencia a fé viva através do símbolo e faz conhecer através da
“harmonia”, mais do que através do conceito. Esse entendimento
pressupõe que nos aproximamos do Mistério com humildade.
Mas, será que vamos ter a coragem de prosseguir o Concílio até este
ponto? No entanto, tal leitura, iluminada pela fé, tem importância fundamental
para a evangelização. E deste modo, “mostra a Igreja aos que estão fora, como
sinal erguido entre as nações, para congregar na unidade à sua sombra os filhos
de Deus dispersos, até que haja um só rebanho e um só pastor” (No 2). Ela
[a leitura da
Constituição] deve deixar de ser um lugar de desobediência às normas da Igreja.
Falando mais especificamente, não pode ser uma ocasião para divisão entre os
católicos.
A leitura dialética da “Sacrosanctum Concilium”, ou a hermenêutica da
ruptura num ou noutro sentido, não são frutos de um mesmo espírito de fé. O
Concílio não queria romper com as formas de Liturgia herdadas da tradição, mas,
ao contrário, queria aprofundá-las. A Constituição estabelece que “as novas
formas surjam a partir das já existentes” (No 23).
Neste sentido, se faz necessário que, aqueles que celebram a
Liturgia conforme o “usus antiquior”, o façam não no espírito de oposição, mas
no espírito da “Sacrosanctum Concilium”. Da mesma forma, seria incorreto
considerar a forma extraordinária do Rito Romano como procedente duma outra
teologia, que não é Liturgia reformada.
Seria ainda desejável, que fosse inserido como anexo da próxima edição
do Missal Romano o Ato Penitencial e o Ofertório da “antiquior usus”, com o
objetivo de acentuar que as ambas formas litúrgicas iluminam uma à outra,
constantemente e sem contradição.
Se vivermos a Liturgia com esse espírito, então, ela vai deixar de ser
um lugar de rivalidade e críticas, para nos permitir participar ativamente
nesta Liturgia “celebrada na cidade santa, Jerusalém, para a qual, como
peregrinamos, onde Cristo está sentado [...], como ministro do santuário” (No
8).
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